Por Phydia de Athayde
A partir de 1º de julho, o brasileiro assume o comando do Chelsea, time do milionário russo Roman Abramovich. Chega à Inglaterra depois de comandar a seleção de Portugal por cinco anos e meio. No período, o time português ficou entre os quatro melhores no Mundial de 2006 e a torcida resgatou um orgulho adormecido. Scolari era o quarto de uma lista de técnicos sondados pelo Chelsea e tratou de aceitar a proposta, estimada em 6,25 milhões de libras anuais por três anos, para confirmar que é o treinador brasileiro mais valorizado do mundo. Qual o segredo desse sucesso? Não há. Ou melhor, não é segredo algum.
O homem é muito simples, muito exigente, muito trabalhador. Também é um tanto rude, um tanto teimoso e outro tanto explosivo. Mas já mostrou ter bom coração e, coisa rara no futebol, é desprovido de ego. Aos 59 anos, Scolari carrega quatro décadas de experiência no futebol. Nesse tempo, aperfeiçoou-se a ponto de, por exemplo, aprender a ouvir opiniões diferentes da sua. Mas não mudou o essencial. “Ele sempre teve liderança. Como zagueiro, era o capitão e o xerifão do time”, diz o radialista esportivo Costa Cabral, que viu Scolari chegar ao Centro Sportivo Alagoano (CSA) para ser campeão estadual em 1981. “Ele não tinha técnica, ia para onde o nariz apontava. Mas tinha o time nas mãos.”
Quem treinava os alagoanos era Walmir Louruz, gaúcho como Scolari e amigo desde a juventude. “Ele não gosta muito de receber conselhos, mas, se é dito no momento certo, acaba ouvindo”, diz. Louruz sugeriu e providenciou que Scolari se tornasse treinador de futebol e, em 1982, estreasse no CSA. A experiência foi difícil, durou apenas dois meses. O novato pegou um “plantel de cobras-criadas”, na avaliação de Cabral, que acompanhava o time: “Por incrível que pareça, o Luiz Felipe, que é durão, foi tirado da equipe porque ainda não tinha esse impulso”. Mas deixou amigos no CSA.
Em 2005, o time estava na Segunda Divisão do alagoano. De passagem pelo estado para gravar um comercial e comprar um terreno na praia de Barra Nova, o ex-técnico fez uma preleção de luxo para os jogadores. Falou que o CSA é grande, que ele próprio já tinha vestido aquela camisa e, ao finalizar, pediu que os atletas dessem “sangue, suor e lágrimas” em campo. Não foi uma tirada imaginosa, mas o time ganhou por 1 a 0.
Sangue, suor, lágrimas e pancada. A fama de técnico que manda bater, e de retranqueiro, faz parte do currículo de Scolari. “Jogador meu tem de ir na bola como se fosse o último prato de comida”, costuma dizer. Ele não é treinador de receber elogios dos fãs do chamado futebol arte. “Jogando feio e ganhando, tudo fica lindo”, ironiza. Seja como for, o futebol de resultados o levou à seleção brasileira (que se encontrava em estado de calamidade em 2001) e rendeu o pentacampeonato ao Brasil, na Copa de 2002. Era o 16º título em 26 finais disputadas pelo técnico.
Scolari é especialista em mata-matas. Gosta de jogar sob pressão e sabe, como poucos, despertar os jogadores. Em 1999, antes de um jogo contra o Corinthians pela Libertadores, vazou para a imprensa o áudio do técnico palmeirense. Felipão mandava chegar junto, “quebrar, chutar, cuspir”. O Palmeiras, mesmo com menos time, superou o rival.
Entre o acanhado treinador do CSA e o vitorioso que chega ao Chelsea, o caminho foi longo e trabalhoso. Entre outros times, ele treinou o Al Shabab da Arábia Saudita e os gaúchos Brasil de Pelotas, Juventude e Pelotas. Em 1987, chegou ao Grêmio pela primeira vez e foi campeão gaúcho. Voltaria ao clube em 1993. Antes, treinou o Goiás (GO), o Al Qadsia (do Kuwait) e a seleção daquele país. Em 1991, foi campeão da Copa do Brasil com o Criciúma (SC) e, no ano seguinte, retornou ao Oriente Médio. A segunda passagem pelo tricolor gaúcho rendeu títulos como a Copa do Brasil (em 1994) e o Campeonato Brasileiro (1996), além da Copa Libertadores da América, em 1995. Em seguida, perdeu a final do Mundial Interclubes, disputada em Tóquio, para o Ajax da Holanda. Em 1999, com o Palmeiras campeão da Libertadores, o Mundial escapou na derrota para o Manchester.
Por onde passou, Scolari deixou boas histórias. Antonio Carlos Verardi, supervisor de futebol cuja história se confunde com a do Grêmio, lembra de quando ele era apenas o zagueiro, “grosso, muito grosso”, do Flamengo de Caxias. O ano era 1977. Em um amistoso contra o Grêmio treinado por Telê Santana, desentendeu-se com um adversário, o zagueiro Oberdan Vilain. “A bola furou a rede pelo lado de fora e o juiz validou o gol. Ele armou um sururu, queria chegar às vias de fato com o Oberdan, era muito voluntarioso”, conta Verardi, entre risos. “Eu me perguntava: ‘esse camarada não se contém?’”
Anos depois, o já técnico Felipão trazia o espírito brigador para o Grêmio. Verardi confirma que, no dia-a-dia, ele é o próprio “sargentão”. E destaca que a maior qualidade do treinador é ter controle total do grupo. Scolari é um obstinado e, com o mesmo ímpeto que se doa, exige entrega incondicional dos comandados. O Grêmio de Scolari ficou marcado como um time violento, como ocorreria com o Palmeiras (onde chegou em 1997, após deixar o Rio Grande do Sul para treinar o Jubilo Iwata, no Japão). O fã Verardi relativiza a violência em campo: “Futebol é um esporte de contato. Interromper um lance pode enfear o espetáculo, mas é buscar a vitória”.
O gremista relata outro episódio, ocorrido durante uma excursão à Europa. Sob o comando de Scolari, o time enfrentava o Estrela Vermelha, da Romênia, e um jogador em especial estava comendo a bola. Ao lado do campo, apontando para o sujeito, o treinador gritou alto e claro para um dos seus: “Vais deixar este filho da p... jogar?” O problema é que o romeno compreendeu. Se não integralmente, por certo a parte que lhe dizia respeito. Veio pra cima de Felipão, Felipão pra cima dele. Outra enorme confusão. Daquela vez, o Grêmio perdeu.
O estilo agressivo deixou hematomas históricos na trajetória de Scolari. Em 1995, durante um confronto entre Grêmio e Palmeiras, o técnico por pouco não partiu para o corpo-a-corpo com Vanderlei Luxemburgo, então treinador do clube paulista. Em 1997, com o Palmeiras, devolveu uma bola que saiu pela lateral jogando-a na cara do jogador do Vasco, Válber. No ano seguinte, ainda no Palmeiras, em uma coletiva após um treino do time, o técnico se estranhou com o jornalista Gilvan Ribeiro. Trocaram provocações e o repórter recebeu um soco no queixo.
Resolver desavenças na base do punho fechado é um instinto que Felipão ainda não aprendeu a controlar. Em setembro do ano passado, no encerramento de uma tensa partida entre a seleção de Portugal e a da Sérvia pelas Eliminatórias da Eurocopa, Scolari tentou esmurrar o jogador sérvio Dragutinovic. Por sorte não acertou, mas as câmeras e toda a Europa flagraram a tentativa de agressão. Está no YouTube.
“Desculpem, não sou infalível. Foi um reflexo após várias provocações, e eu quis proteger meus jogadores”, justificou-se após a ocorrência. O assessor de imprensa do treinador, Acaz Fellegger, ajudou a preparar uma estratégia de mídia para minimizar as conseqüências do destempero. Além do pedido de desculpas, aceitas pelo sérvio, o treinador participou de um respeitado talk show na tevê portuguesa, ocasião em que pôde explicar o enredo completo das provocações que culminaram no soco fora do alvo. A tese da defesa, que é a mais crua verdade, baseou-se na palavra-chave dos relacionamentos pessoais e profissionais de Felipão: lealdade.
“Ele morre por você.” Fellegger diz algo que poderia ser repetido por qualquer um que tenha sido comandado por Scolari. E a lealdade tem um preço: “Se você errar com ele, esqueça. Não uma falha humana, mas proposital. Acabou”. O assessor é um confesso admirador do técnico e guarda na lembrança o momento em que ele disse que o apoiaria no clube (então, o Palmeiras), mas que ele deveria fazer o mesmo. “Foi dito e feito”, conta Fellegger. Assim que o contrato com o clube paulista terminou, foi convidado a trabalhar diretamente com o treinador. E lá se vão oito anos.
Com a mesma intensidade que cobra e exige, Scolari zela pelos seus. No vestiário, é o tipo de treinador que se preocupa com os problemas pessoais de cada jogador. Sabe os nomes de cor e sempre pergunta como andam os filhos, a esposa, a família. “Ele tem um coração enorme, é muito sensível”, diz Verardi, e faz uma análise da relação entre os boleiros: “O principal adversário do jogador de futebol é o reserva da posição. É muito difícil administrar o emocional do vestiário, e o Scolari sabe como ninguém manter o espírito do grupo unido”.
Pracidelli tem 14 anos de Palmeiras. Nesse período, viu uma infinidade de técnicos entrarem e saírem do clube. Nenhum se parece com Scolari. Profissionalmente, diz, é exigente e detalhista acima da média. “Pessoalmente, ele é um pai. Chama a sua atenção, mas te pega no colo, te protege para toda a vida”, diz o preparador de goleiros, que acaba de ser anunciado como primeiro reforço no Chelsea de Felipão. O treinador já o havia chamado para integrar a equipe técnica da seleção brasileira na Copa de 2002 e agora repete o convite. Como na vez anterior, Pracidelli foi surpreendido por um telefonema de Felipão, a quem chama de “Seu Luiz”. Sensibilizado e feliz pelo reconhecimento, aceitou sem pestanejar.
Se a relação do treinador com os dirigentes é mais distante (“Eles cuidam do que é deles, do campo cuido eu”), o calor humano de Scolari extrapola fácil o vestiário para se estender ao porteiro, à copeira, aos funcionários que aparam o gramado. Pracidelli traduz: “Todos se sentem importantes. Ele faz a sua dor ser a dor dele. Não dá para não aceitar esse pacto. Quando acontece uma derrota, ele chora junto com os jogadores, mas é o primeiro a abraçar todo mundo e levantar o moral da equipe”.
Bom gaúcho, Scolari adora um churrasco. Nas confraternizações entre jogadores e equipe técnica, é sempre um dos que mais participam. Fica na churrasqueira, faz questão de salgar a carne, toma lá uma cervejinha, uma caipirinha e é um ótimo contador de piadas. Enquanto viveu em Portugal, durante as visitas ao Brasil, não era raro aproveitar a escala em São Paulo e telefonar, do aeroporto, para Pracidelli. “Junta a rapaziada!”, era a senha para mais um almoço na churrascaria Fogo de Chão, próxima ao centro de treinamento do clube.
Além de Pracidelli, Felipão tem uma legião de amigos e parceiros a quem é muito fiel. E todos respondem com a mesma lealdade. Entre eles, o inseparável auxiliar técnico Flávio Murtosa, o preparador físico Paulo Paixão, o ex-dirigente do Grêmio Luiz Carlos Silveira Martins e o autor de sua biografia, Ruy Carlos Ostermann. Há, ainda, o presidente do Clube dos Treze, Fábio Koff, que, assim como Ricardo Teixeira na CBF, está no cargo há décadas após sucessivas e protocolares reeleições.
Em política, fica entre a ingenuidade e o desinteresse. Durante entrevista a uma rádio, em 1998, Scolari não escondeu a simpatia pelo ex-ditador chileno Augusto Pinochet, que, conforme disse, “fez coisa boa também. Ajeitou muitas coisas lá (no Chile)”. Nunca declarou preferência partidária. “Não tenho partido. Não quero saber dessa história de direita e esquerda. Costumo votar nos meus amigos.” Pano rápido.
Scolari é um profundo respeitador da hierarquia interna nos clubes, mas não recebe bem críticas vindas de fora. Em 2000, após uma derrota do Palmeiras para o Cruzeiro, o palmeirense e então ministro da Saúde José Serra o chamou de “retranqueiro”. A resposta foi curta e grossa: “Boa é a situação da saúde no Brasil. Minha sorte é que eu tenho um bom plano”.
Em 2002, não deu para Romário. Felipão, que cumprira a missão de classificar a seleção brasileira para o Mundial daquele ano, foi pressionado por Ricardo Teixeira para que convocasse o genioso craque. Teixeira, a quem Scolari se referia como “doutor Ricardo”, ouviu um sonoro não. Ou melhor, um: “Tudo bem. Ele entra, eu saio”. O cartola preferiu manter o técnico e Romário ficou fora da Copa do Japão-Coréia. Os escolhidos pelo treinador rapidamente entraram no esquema “sangue, suor e lágrimas” e receberam a alcunha de “Família Scolari”. Na Ásia, como se viu, a disciplinada família venceu todos os sete jogos.
De volta ao Brasil, o devoto Scolari pagou uma promessa à Nossa Senhora de Caravaggio e percorreu, a pé, os 18 quilômetros que separam Caxias do Sul do santuário de Farroupilha. Como em outras ocasiões, escalou o velho companheiro Louruz, que também é devoto, para acompanhá-lo. “Eu mesmo não prometo caminhadas, mas já o acompanhei duas ou três vezes. Sempre que ele faz promessa, me chama”, conta o amigo, para quem Felipão, apesar de todas as conquistas, não mudou nada. Nem com o sucesso na seleção brasileira, nem com o trabalho na de Portugal, nem mudará ao assumir o milionário Chelsea. “Mudou a vida dele, mas ele continua o mesmo cara, chato e ranzinza”, diz. Como o amigo, sem meias palavras.
Entre o afago e o safanão, sempre sem cerimônia, Scolari segue fazendo história. Nesses anos todos, sempre preservou a família do assédio da imprensa. É casado com Olga e pai de dois filhos, Fabrício e Leonardo, de 16 e 25 anos. A família prepara-se para viver os próximos três anos na Inglaterra e depois, quem sabe, retornar a Canoas, a 14 quilômetros de Porto Alegre. Mas Felipão não considera o Chelsea o último desafio da carreira. No horizonte não tão distante está a Copa de 2014, a ser realizada no Brasil. Não deixa de ser uma tentação e um sonho para o especialista em mata-matas. E em emoção.